IMAGENS DO TEMPO - PETER COVENEY E ROGER HIGHFIELD

 

Imagens do Tempo


A desgraça havia me ensinado a ruminar assim: Que o Tempo vai chegar e fugir com meu amor. Esse pensamento é como uma morte que não consegue fazer outra coisa senão lamentar e possuir o que teme perder.”
William Shakspeare

O tempo é uma das maiores fontes de mistério para a humanidade. Pela história afora os seres humanos sempre se sentiram intrigados e inquietos com a natureza profunda mas inescrutável sua. É um assunto que cativou poetas, escritores e filósofos de todas as gerações. Mas parece que não cativou tanto os cientistas modernos. A ciência contemporânea (e a física em particular) procurou reprimir, senão eliminar, o papel do tempo na ordem das coisas. O tempo já foi descrito como a dimensão esquecida.
Todos nós temos consciência da passagem irreversível do tempo que parece dominar a nossa existência, na qual o passado é fixo e o futuro é aberto. Talvez o nosso anseio seja fazer o relógio andar para trás para que possamos desfazer erros ou reviver algum momento maravilhoso; mas, infelizmente, o bom senso está contra nós: o tempo e a maré não esperam por ninguém. O tempo não consegue andar para trás.
Ou será que consegue? É perturbador, mas em muitas teorias científicas em que a direção do tempo não faz diferença existe pouco apoio para encarar o tempo através do senso comum. Os grandes suportes da ciência moderna, tais como a mecânica de Newton, a relatividade de Einstein e a mecânica quântica de Heisenberg e Schrõdinger, parecem funcionar igualmente bem com o tempo andando às avessas. Para essas teorias, os acontecimentos registrados num filme seriam perfeitamente plausíveis, independentemente do sentido em que ele fosse passado num projetor. Na realidade, o tempo unidirecional chega a parecer uma simples ilusão criada pela nossa mente. Geralmente os cientistas que pesquisam este problema são um pouco sarcásticos quando falam do sentido comum que damos à passagem do tempo, chamando-o de ‘tempo psicológico’ ou ‘tempo subjetivo’.
Será possível que em algum lugar do universo a direção do tempo possa fluir contra o tempo com o qual estamos familiarizados, num mundo em que as pessoas se levantam do túmulo, perdem as rugas e acabam voltando ao útero?
Seria um mundo em que o perfume se condensaria misteriosamente nos frascos; em que as ondas concêntricas da água de um lago convergiriam e ejetariam a pedra que as formou; em que o ar das salas se separaria espontaneamente nos seus componentes; em que um pedaço de borracha enrugada se expandiria e se fecharia na forma de balões; em que a luz sairia dos olhos dos astrónomos e seria absorvida pelas estrelas. Talvez as possibilidades não acabem por aí. Será que, se esta linha de pensamento estiver certa, é possível inverter o tempo aqui na Terra? Poderíamos, todos nós, ser sugados de volta ao passado?
Isso contradiz todas as provas de que o tempo passa numa direção única. Por exemplo, compare o tempo com o espaço. O espaço nos rodeia, mas o tempo é sentido aos pouquinhos. A distinção entre direita e esquerda é banal em comparação com a diferença entre passado e futuro. Podemos ir e vir livremente pelo espaço, mas não conseguimos afetar nem o futuro nem o passado pelos nossos atos. Temos memória, não conhecimento prévio (clarividentes à parte). De modo geral, os materiais parecem decompor-se, mais do que se formam espontaneamente. Por isso parece que, embora o espaço não tenha uma direção preferencial característica, o tempo o tem. O tempo anda como uma flecha. A expressão evocativa ‘a flecha do tempo’ foi cunhada pela primeira vez pelo astrofísico Arthur Eddington em 1927. (…)

O Tempo na Literatura

Do ponto de vista do bom senso, o conceito de tempo encontra a sua expressão mais eloquente em algumas das maiores obras da literatura. O tempo unidirecional nos dá a ideia de transitoriedade que foi captada magnificamente no título do romance autobiográfico de Proust, Em busca do tempo perdido. O que predomina na mente de autores desse quilate é saber que temos apenas uma quantidade finita e pequena de tempo para viver e que é impossível voltar atrás. “À medida que o tempo avança de forma inevitável, os momentos têm de ser agarrados e cada instante tem de ser apreciado com uma intensidade pungente. O mistério da vida torna-se mais maravilhoso justamente pela sua própria transitoriedade, ao passo que o nosso senso de irreversibilidade do tempo é intensificado pela morte. Não é coincidência o fato de a figura simbólica do Pai Tempo partilhar os próprios atributos (a foice e a ampulheta) com a Ceifadora Implacável, que é o arcabouço da morte, o qual nos ceifará a todos quando o nosso tempo se esgotar.
O fluxo de tempo é descrito incessantemente na literatura e na poesia. Nos escritos do poeta-filósofo persa Ornar Khayyám (datados de 1123) podemos encontrar uma das meditações mais admiráveis sobre o tempo, imortalizada na tradução livre para o inglês de Edward Fitzgerald:
O Dedo Movente escreve; e nesse intento continua: nem toda sua Piedade ou Bom Senso conseguirão trazê-lo de volta para cancelar nem meia Linha, nem todas as tuas Lágrimas lavarão Palavra do lenço.
Aqui a irreversibilidade é revelada como a fonte final do patos da vida humana. O triunfo final da morte não é falado, mas está implícito. E temos aqui um elo com a ciência, pois o fato de toda criatura viva morrer é a prova mais tangível da passagem do tempo. Trata-se de um tema crucial, se quisermos extrair algum sentido do mundo que nos rodeia. Nas palavras de Arthur Eddington: “Em qualquer tentativa de estabelecer uma ponte entre os domínios das sensações pertencentes aos lados espiritual e físico da nossa natureza, o tempo ocupa a posição-chave”.

O Tempo Cultural

A ideia de um tempo direcional nem sempre existiu. As marés, os solstícios, as estações e os movimentos cíclicos dos corpos celestes levaram muitas sociedades primitivas a encarar o tempo em termos de ritmos orgânicos, como se tivesse uma natureza basicamente circular. Essas sociedades achavam que, já que o tempo era inseparável dos movimentos circulares dos céus, ele, em si, era circular. O dia vem depois da noite, a lua nova vem depois da cheia, o verão vem depois do inverno: por que não pode acontecer a mesma coisa com a história? Os maias da América Central achavam que a história se repetiria a cada 260 anos, período de tempo denominado o lamat, ou elemento fundamental, de seu calendário. Também acreditavam em catástrofes cíclicas: quando um grupo de espanhóis invasores aportou em 1698 em suas terras, os membros de uma tribo, os itzas, fugiram porque acreditavam que o ciclo havia completado um círculo e a calamidade estava chegando. Tinham razão, mas não por previsão, nem mesmo por coincidência: os espanhóis sabiam o que esperar porque 80 anos antes seus próprios missionários conheceram esta crença maia.
No pensamento cosmológico grego, o padrão cíclico de tempo era um aspecto comum. No livro Física, Aristóteles observou que “existe um círculo em todas as outras coisas que têm um movimento natural, passando a existir e a morrer. Isso acontece porque todas as outras coisas são discriminadas pelo tempo e começam e acabam como se percorressem um círculo; o fato é que até o próprio tempo em si é considerado um círculo.” Os estóicos achavam que cada vez que os planetas voltavam às mesmas posições relativas que ocupavam no início do tempo o Cosmo se renovava. Nemésio, que era bispo de Emesa no século IV d.C, observou que “Sócrates, Platão e todos os indivíduos viverão de novo, com os mesmos amigos e os mesmos conterrâneos. Passarão pelas mesmas situações, sentirão as mesmas coisas e terão as mesmas atividades. Todas as cidades, aldeias e campos serão restaurados e voltarão a ficar como eram antes. E essa restauração do universo ocorre não apenas uma vez, mas várias: na verdade, acontece por toda a eternidade, infindavelmente”. É como se os acontecimentos históricos estivessem dispostos em torno de uma enorme roda celeste. Essa noção do eterno retorno reapareceu na matemática moderna como “a periodicidade de Poincaré”, em homenagem a Henri Poincaré, um dos mais brilhantes matemáticos em atividade na virada do século XX.
A flecha do tempo suscitava um medo profundo, um terror, porque implicava instabilidade, fluxo e mudança. Também apontava para o fim do mundo, em vez de indicar renascimento e reflorescimento. No livro que escreveu sobre flechas do tempo, The myth of the eternal return (O mito do eterno retorno), o antropólogo e historiador de religiões romeno Mircea Eliade afirma que, pelo mundo afora, a maioria das pessoas apega-se ao consolo do ciclo do tempo segundo o qual o passado é o futuro, a ‘história’ real não existe e a humanidade está resignada a renascer e a reflorescer. Significativamente, escreveu que “A vida do homem arcaico (…) embora ocorra no tempo, não registra a sua irreversibilidade; em outras palavras, deixa completamente de lado o que é especialmente característico e decisivo numa percepção consciente do tempo”.
Foi a tradição judaico-cristã que estabeleceu o tempo ‘linear’ (irreversível) de uma vez por todas na cultura ocidental. Eliade escreveu que “O pensamento cristão tendeu a transcender de uma vez por todas os velhos temas da repetição eterna”. A partir da crença dos cristãos no nascimento e na morte de Cristo e na sua crucificação como fatos sem par que não podem se repetir, a civilização ocidental passou a considerar que o tempo é um percurso linear que se estende entre o passado e o futuro. Antes do advento do cristianismo só os hebreus e os persas zoroastrianos adotavam este ponto de vista progressivo do tempo.
O tempo irreversível influenciou profundamente o pensamento ocidental. Preparou a mente humana para a ideia de progresso, para o conceito de ‘tempo profundo’, para a supreendente descoberta dos geólogos de que a evolução humana é apenas um episódio recente e curto na história da Terra. Preparou o caminho para a teoria da evolução de Darwin, que fala da nossa união com criaturas mais primitivas através dos tempos. Em resumo, o advento da ideia do tempo linear e da evolução intelectual desencadeada por essa ideia corroborou a ciência moderna e a promessa de melhoria da vida na Terra.
Na biologia os aspectos do tempo são análogos ao que ocorre culturalmente, tanto de modo cíclico como linear. Aparecem tempos cíclicos na divisão celular e na orquestra de ritmos variados que existem no nosso corpo. Estes vão dos impulsos nervosos de alta frequência aos ciclos preguiçosos da transformação celular. A noção de tempo irreversível é manifestada pelo envelhecimento. Os relógios comuns exprimem estas duas facetas do tempo. Compõem uma sucessão de oscilações de um pêndulo ou de um cristal que revelam ‘o tempo’ na Terra, expresso como um ciclo de 12 ou 24 horas. A passagem do tempo é manifestada indiretamente por dissipação: as baterias se gastam, os motivos que nos impulsionam vão diminuindo, os pesos caem.

O Tempo na Filosofia

O tempo foi tema de pesquisas especulativas e frequentes de filósofos. No livro The natural philosophy of time (A filosofia natural do tempo), que tanta influência exerceu, o matemático Gerald Whitrow focaliza como as ideias de Arquimedes e de Aristóteles representam dois pontos de vista opostos sobre o tempo: Aristóteles, contrariamente à opinião de Arquimedes, dizia que o tempo era intrínseco e fundamental para o universo. O debate entre ambos continua através dos séculos, de um modo ou de outro.
Na obra cosmológica de Platão, Timeu, o tempo nasceu quando um ferreiro divino impôs forma e ordem ao caos primordial. O Timeu começa com a distinção entre mundo inteligível e mundo sensível, dois conceitos que reaparecem de formas diversas nas teorias científicas modernas. Para Platão o mundo inteligível é o mundo real “que pode ser apreendido pela inteligência com o auxílio do raciocínio e é eternamente o mesmo”, ao passo que o mundo sensível (que constitui os domínios do tempo) “é o da opinião e da sensação irracionais, mundo que passa a existir e deixa de existir mas nunca é completamente real”. Platão estava fazendo a mesma distinção entre uma viagem (algo que vai acontecer ou que será gerado) e o destino dessa viagem (ser), afirmando que só o último era real. Toda a filosofia de Platão foi dominada por essa diferença segundo a qual o mundo sensível (incluindo o tempo) tem apenas uma realidade secundária. (…)
Assim como a cor vermelha consegue induzir expressões subjetivas diferentes em diversos observadores sem deixar de ser um componente essencial da luz, o filósofo Immanuel Kant afirmava que o tempo, apesar de ser um componente essencial do nosso intelecto, é destituído de realidade objetiva: “O tempo não é uma coisa objetiva. Não é nem substância, nem acidente, nem relação; é uma condição subjetiva necessária por causa da natureza da mente hu-mana”. O ponto de vista ‘subjetivista’ de Kant encontra paralelos íntimos na maneira pela qual alguns cientistas procuram explicar o tempo na ciência de hoje. Uma explicação muito simples e óbvia, apoiada entre os idealistas de todas as épocas, tais como Parmênides, Platão, Spinoza, Hegel, Bradley e McTaggart, é dizer que a noção de tempo inclui muitas contradições, por isso não pode ser real. O lógico M. Cleugh fez a seguinte observação fulminante a respeito desta espécie de evasão metafísica: “Dizer simplesmente que o tempo, pelo fato de ser autocontraditório, precisa ser apenas uma aparência, longe de resolver os problemas, não é sequer uma resposta”. (…)

O Tempo: Newton e Einstein

(…). Podemos atribuir o nascimento de um tempo verdadeiramente científico a Isaac Newton, que descobriu as expressões matemáticas do movimento dos corpos. Foi um feito assombroso: a descrição matemática conseguiu descrever o movimento de objetos que iam de maçãs a luas e fundia os mecanismos celestes com os terrestres. A incrível capacidade das expressões que Newton usou para descrever o movimento dos céus usando apenas algumas suposições, juntamente com o encanto estético destas, rapidamente fez com que suas ideias fossem aceitas. Com isso Newton estabeleceu as bases da física moderna.
Sem dúvida nenhuma Newton foi influenciado pelo matemático Isaac Barrow que, tendo se aposentado como professor lucasiano de Cambridge em 1669, tomou as providências necessárias para que Newton o substituísse. Barrow observara que, “já que os matemáticos usam tão frequentemente o tempo, deveriam ter uma ideia do significado dessa palavra; de outra forma, são charlatães”. No entanto, a despeito da grandeza do feito científico de Newton, o tempo só foi incorporado às equações newtonianas como uma quantidade primitiva e indefinida. Do mesmo modo que o espaço, o tempo era absoluto. Isso quer dizer que todos os acontecimentos podiam ser considerados como se tivessem uma posição distinta e diferente no espaço e ocorressem num instante de tempo particular. Qualquer lugar, do Observatório de Greenwich à ponta de uma galáxia espiral distante, estava ligado pelo mesmo momento do ‘agora’. Como disse Newton no livro Principia Mathematica: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático por si mesmo e proveniente da sua própria natureza (…) transcorre uniformemente sem relação com nada externo”.
A mecânica de Newton promete um poder de previsão vastíssimo que faz com que um instante forneça todas as informações possíveis sobre o passado e o futuro do universo. Considere as posições e velocidades de todas as estrelas do nosso universo em qualquer instante e introduza esses valores num computador cósmico capaz de resolver as equações de Newton. O passado e o futuro estão congelados naquele instante: o computador conseguiria calcular a posição e a velocidade de cada estrela em todos os tempos; mas o que as equações de Newton não conseguem fazer é decidir qual direção do tempo constitui o passado ou o futuro reais do nosso universo. Em vez disso, despojam o tempo do seu sentido de direção e não deixam espaço para a sua marcha implacável adiante. (…) Essa crença num mundo determinístico em que o tempo não tem direção e no qual o passado e o futuro estão pré-ordenados representou um papel proeminente no desenvolvimento da física. (…)
Hoje sabemos que a teoria do movimento de Newton não funciona quando é aplicada aos corpos que se movimentam com velocidade próxima à da luz, às massas muito grandes (incluindo os buracos negros, em que as forças gravitacionais ficam enormes) e às menores escalas de comprimento que se referem a partículas atómicas e subatômicas. Mas as duas grandes revoluções da física do século XX que reinam nesses regimes (ou seja, a relatividade de Einstein e a mecânica quântica) também se baseiam na mesma noção de tempo sem direção. Também elas continuam incapazes de estabelecer uma ponte entre o tempo irreversível da história e da literatura e o tempo simétrico das leis de Newton.
Isso não quer dizer que essas revoluções não tenham trazido ideias interessantíssimas sobre o tempo. As teorias da relatividade de Einstein arrasaram o conceito de tempo absoluto baseado no bom senso e em Newton, isto é, o conceito de que devemos considerar que qualquer acontecimento do universo ocorreu num ponto particular do espaço e num dado instante do tempo, que é o mesmo em qualquer lugar. Em vez disso, Einstein ofereceu a ideia de haver uma exigência tetradimensional do espaço-tempo (três dimensões de espaço mais uma de tempo) em vez da evolução de uma existência tridimensional no tempo. A nossa percepção do tempo pode deturpar-se por drogas ou doenças, mas a teoria da relatividade de Einstein mostra que essa percepção também depende do ponto de vista de cada pessoa: quanto mais depressa um relógio se desloca, mais devagar bate. (…)

Tempo Quântico

A teoria quântica que rege o mundo atómico e molecular parece mais promissora na nossa busca de uma base científica para a direção do tempo. Ela dá uma descrição mais aceitável (se bem que desconcertante) das excentricidades dos átomos e das moléculas. Consegue explicar o comportamento dos lasers, das partículas subatômicas contidas nos reatores nucleares, dos elétrons nos computadores e muitas outras coisas. Baseados numa descrição quântica dos vastos aglomerados de átomos e moléculas que constituem o mundo, talvez conseguíssemos descrever a flecha do tempo de maneira tão sutil quanto a apreendemos pelos nossos sentidos. (…)
(…) Do mesmo modo que a relatividade de Einstein, a teoria quântica também tem dificuldades intrínsecas profundas: pode explodir em infinidades incómodas quando aplicada em algum problema real, como, por exemplo, o modo pelo qual a luz é absorvida e emitida por átomos. Embora os físicos tenham aprendido truques engenhosos para contornar esses problemas, temos a impressão de que eles proporcionam mais provas de que alguma coisa está terrivelmente errada. (…)

O Tempo e a Termodinâmica

Há um segundo tipo de descrição que se faz no nível macroscópico e que tratados fenómenos numa escala que conseguimos ver, degustar, sentir e tocar. É nesse nível que se aplica a disciplina conhecida como termodinâmica. Desenvolvida por Black, Carnot, Clausius, Boltzmann, Gibbs e outras pessoas com o advento da força a vapor no decorrer do século XIX, inicialmente era destinada a estudar o desempenho de motores térmicos. Essa teoria estabeleceu a relação que existe entre calor e trabalho, esclarecendo como o primeiro pode ser transformado em outras formas de energia ou intercambiado com elas.
A mecânica clássica, a relatividade e a mecânica quântica confundiram a nossa ideia de passagem do tempo, mas a termodinâmica veio em nosso auxílio. Assim como temos consciência de uma direção do tempo, a segunda lei da termodinâmica também a tem; trata-se da lei que diz que o calor só pode passar de um corpo mais quente para um mais frio, que os bonecos de neve se derretem e que as estátuas se fragmentam. A ligação que há entre a segunda lei e o nosso sentido de tempo pode ser ilustrada com um filme de um touro numa loja de louças. Se o tempo estivesse andando na direção certa, poderíamos esperar que o filme mostrasse uma bela porcelana chinesa indo pelos ares e muitas peças de cerâmica sendo pisoteadas pelos cascos. Mas se o touro voltasse sobre os próprios passos numa loja de louças arrasada e surgisse deixando todas as xícaras bem arrumadas no lugar, saberíamos que o filme estava sendo rodado do fim para o começo. A segunda lei contraria fatos como esse, assim como os fabricantes de máquinas motos-contínuos simplesmente demonstrando que em qualquer processo perde-se energia em forma de calor: nesse caso, embora a energia da louça quebrada seja transformada em calor e som, nunca consegue ser recuperada. Essa perda irreversível está ligada ao nosso sentido de passagem do tempo: pela segunda lei descobrimos que existe uma grandeza chamada entropia (medida da capacidade de mudança) que está intimamente ligada ao tempo. O aumento da entropia é um sinal que indica a direção do tempo. (…)
Como já vimos, na mecânica de Newton qualquer momento do passado, do presente ou do futuro é como qualquer outro. Nesse sentido a mecânica é ‘intemporal’ e a evolução só tem um significado banal. Mas na termodinâmica os momentos são distinguidos pela entropia de um universo que está realmente evoluindo. (…)
(…) À primeira vista parece que a segunda lei é contrariada por outra descoberta que agitou o mundo do século XIX, ou seja, a teoria da evolução de Darwin. A mecânica clássica retratava o universo como uma máquina perfeita, ao passo que a termodinâmica parecia implicar que a máquina estava se encaminhando para uma desorganização completa. Por outro lado, a obra de Darwin mostra que a vida ficou mais (não menos) organizada com o correr dos tempos, à medida que criaturas simples originaram outras mais complexas. A evolução de muitos seres vivos que voam, nadam e andam na Terra poderia parecer incompatível com uma teoria que prega o declínio inexorável. Na realidade, não existe contradição. O fato é que na segunda lei da termodinâmica existe alguma coisa mágica escondida que possibilita a ocorrência de urna evolução criadora (em vez de puramente destrutiva). Talvez Boltzmann tenha visto isso de relance já em 1878, mas o desenvolvimento dessa ideia teria de esperar até que uma reavaliação mais recente da segunda lei mostrasse que ela não implica um declínio monótono para a desordem: ao contrário, o universo consegue aproveitar a termodinâmica para criar, desenvolver e expandir. Isso confere um novo grau de aperfeiçoamento e até uma credibilidade maior à flecha do tempo da segunda lei.

O Tempo Criador

Usando uma termodinâmica do século XX apresentada pela primeira vez e desenvolvida em grande parte pelo grupo dirigido por Ilya Prigogine na Universidade Livre de Bruxelas, conseguimos ter uma ideia de como a ordem pode surgir da desordem em termos de um paradigma científico novo, que é o da ‘auto-organização’. Este paradigma argumenta que, ao contrário do legado de conhecimentos que recebemos, a segunda lei não é sinónimo de um desaparecimento inexorável na desordem. Embora isso pudesse ser o estado final da matéria e indicasse um universo corrupto e desintegrado no fim dos tempos, é certíssimo que a segunda lei não afirma que essa tendência ocorre uniformemente por todo o espaço e por todo o tempo.
(…) Um exemplo de auto-organização que pode ser visto no laboratório é o ‘relógio químico’: um tipo particular de reação química que muda de cor em intervalos regulares e também pode apresentar estruturas espiraladas muito bonitas. Para manter tais figuras essas reações químicas precisam ser constantemente abastecidas. Também têm ingredientes especiais, isto é, uma série de reações químicas entrosadas (que envolvem ciclos de retroalimentação) nas quais os produtos resultantes também participam da mesma reação química ou então catalisam a sua própria formação. É admirável como, dos trilhões incontáveis de moléculas do relógio químico, todas parecem saber exatamente o que a outra está fazendo e conseguem se ‘comunicar’ entre si.
Estas ideias têm implicações de longo alcance na biologia, na qual o estado final de mudança (ou seja, o equilíbrio) é a morte. A termodinâmica oferece uma linguagem que pode ser usada para descrever os processos biológicos; para que ocorra alguma mudança, tais processos têm de ser mantidos longe do equilíbrio. Existimos graças a uma teia complexa de ritmos sincronizados de maneira intrincada. (…)
Mais interessantes ainda são as implicações do tempo. A auto-organização (em particular, o exemplo do relógio químico) mostra que a segunda lei da termodinâmica não só proporciona uma flecha do tempo como tem dentro de si as sementes e os desenhos dos ciclos temporais que usamos para discernir o mundo que nos cerca. Esses dois aspectos são importantes. A flecha do tempo representa progresso: cada instante fica gravado com uma marca histórica individual. Mas quando procuramos figuras e desenhos nos fenómenos naturais regidos pelas mesmas leis, a metáfora do ciclo do tempo tem uma importância vital — do mesmo modo que as batidas e o ritmo estabelecem uma diferença entre música e um mero ruído. A segunda lei proporciona uma base para as duas imagens mais importantes que fazemos do tempo. (…)

O Caos e a Flecha

No contexto dos processos irreversíveis, o caos não significa uma pura ação violenta; significa, antes, uma forma fantástica de ordem. O fato é que as equações que descrevem o comportamento do relógio químico oferecem um espectro de possibilidades riquíssimo que serve não só para expor a auto-organização mas também para explicar o ‘caos determinístico’, que é uma aleatoriedade paradoxal e previsível. No relógio químico o caos é visto como uma sequência aleatória de mudanças de cor. Chama-se determinístico porque os cientistas que estudam o caos destrincharam esse comportamento e revelaram a forma sutil de uma organização subjacente. Parece que o caos está subjacente ao tempo meteorológico, no qual as previsões podem funcionar a curto prazo mas não têm valor em intervalos de tempo maiores. Agora os cientistas do mundo inteiro estão tentando encontrar caos no aumento e diminuição das populações da mariposa branca europeia, na epilepsia e numa série de outros fenómenos, desde política até economia.
Nas equações simétricas do tempo elaboradas por Newton também existe caos. Esta descoberta é bem surpreendente e tem implicações profundas. O físico Joseph Ford se autoproclamou o ‘evangelista do caos’ e dizem ter dito o seguinte: “Estamos no início de uma revolução importante. De todos os modos vemos que a natureza vai se modificar”. Várias pesquisas demonstram que o caos consegue surgir até na mais simples das situações; por exemplo, quando só três partículas estão interagindo. Isso demole o mito secular da previsão e do determinismo e com ele a ideia de um universo de mecanismo de relógio. Se o passado é fixo, o futuro permanece aberto e redescobriremos a flecha do tempo. (…)

Excertos do livro “A Flecha do Tempo” (Ed. Siciliano, 1993)Por Peter Coveney e Roger Highfield.

Fonte:http://grupopapeando.wordpress.com/2012/04/10/

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